15 junho 2013

Um Belo texto! Que para muitos também é poesia =)



DA SOLIDÃO - CECÍLIA MEIRELES


Há muitas pessoas que sofrem do mal da solidão. Basta que em redor delas se arme o silêncio, que não se manifeste aos seus olhos nenhuma presença humana, para que delas se apodere imensa angústia: como se o peso do céu desabasse sobre a sua cabeça, como se dos horizontes se levantasse o anuncio do fim do mundo.
No entanto, haverá na terra verdadeira solidão? Não estamos todos cercados por inúmeros objetos, por infinitas formas da Natureza e o nosso mundo particular não está cheio de lembranças, de sonhos, de raciocínios, de idéias, que impedem uma total solidão?
Tudo é vivo e tudo fala, em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas, mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. Como aquele Sultão Mamude, que entendia a fala dos pássaros, podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse aparente vazio da solidão: e pouco a pouco nos sentiremos enriquecidos.
Pintores e fotógrafos andam em volta dos objetos à procura de ângulos, jogos de luz, eloqüência de formas, para revelarem aquilo que lhes parece não só o mais estático dos seus aspectos, mas também o mais comunicável, o mais rico de sugestões, o mais capaz de transmitir aquilo que excede os limites físicos desses objetos, constituindo, de certo modo, seu espírito e sua alma.
Façamo-nos também desse modo videntes: olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho das cadeiras, a transparência das vidraças, os dóceis panos, tecidos sem maiores pretensões. Não procuremos neles a beleza que arrebata logo o olhar, o equilíbrio de linhas, a graça das proporções: muitas vezes seu aspecto- como o das criaturas humanas- é inábil e desajeitado.Mas não é isso que procuramos, apenas: é o seu sentido íntimo que tentamos discernir.Amemos nessas humildes coisas a carga de experiências que representam, e a repercussão, nelas sensível, de tanto trabalho humano, por infindáveis séculos.
Amemos o que sentimos de nós mesmos, nessas variadas coisas, já que, por egoístas que somos não sabemos amar senão aquilo em que nos encontramos. Amemos o antigo encantamento dos nossos olhos infantis, quando começavam a descobrir o mundo: as nervuras das madeiras, com seus caminhos de bosques e ondas e horizontes; o desenho dos azulejos; o esmalte das louças; os tranqüilos, metódicos telhados... Amemos o rumo da água que corre, os sons das máquinas, a inquieta voz dos animais, que desejaríamos traduzir.
Tudo palpita em redor de nós, e é como um dever de amor aplicarmos o ouvido, a vista, o coração a essa infinidade de formas naturais ou artificiais que encerram seu segredo, suas memórias, suas silenciosas experiências. A rosa que se despede de si mesma, o espelho onde pousa o nosso rosto, a fronha por onde se desenham os sonhos de quem dorme, tudo, tudo é um mundo com passado, presente, futuro, pelo qual transitamos atentos ou distraídos.Mundo delicado, que não se impõe com violência: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso respeito; que espera que o descubramos, sem se anunciar nem pretender prevalecer; que pode ficar para sempre ignorado, sem que por isso deixe de existir; que não faz da sua presença um anúncio exigente “ Estou aqui! Estou aqui!”.Mas, concentrado em sua essência, só se revela quando os nossos sentidos estão aptos para o descobrirem.Em que em silêncio nos oferece sua múltipla companhia, generosa e invisível.
Oh! Se vos queixais de solidão humana, prestai atenção, em redor de vós, a essa prestigiosa presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversará convosco interminavelmente.



                              MEIRELES, Cecília. Janela mágica. São Paulo: Moderna, 1983.
 

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